1 de abril de 2009

> Papus, Téder e a O.T.O. na França

por Carlos Raposo

Um labirinto é uma casa edificada

para confundir os homens;
Sua arquitetura, pródiga em simetrias,
está subordinada a este fim.
(Jorge Luis Borges, em O Aleph)

presente post se encontra inserido exatamente no mesmo contexto dos artigos sobre Rudolf Steiner e Arnold Krumm-Heller, ou seja, diz respeito às tentativas de Frater Merlin Peregrinus (i.e. Theodor Reuss) de trazer um pouco de respeitabilidade e legitimidade para a sua então recém criada Ordo Templi Orientis. Como já visto nestes artigos, a estratégia de Reuss era deveras bem simples: atrair para a O.T.O. nomes de grande visibilidade no ocultismo internacional.

Posto isto, meu propósito aqui é avaliar a participação na O.T.O. do proeminente ocultista francês Dr. Gerard Encausse (1865-1916)(1), mais conhecido pelo cognome Papus. Concomitantemente, mesmo que rapidamente, apreciarei outros dois renomados ocultistas franceses que, de um modo ou de outro, costumam ser citados como expoentes confrades da Ordo Templi Orientis ao longo dos primeiros decênios do século XX.

Reuss contatou Papus em 1901, bem antes da fundação da O.T.O., que ocorreria apenas em 1906. Inicialmente, os objetivos de Reuss ao buscar se relacionar com aquele ilustre ocultista parecem ter sido dois: primeiro, aproximar-se de Papus; segundo, não medindo esforços para ser reconhecido como Maçom de prestígio, buscar representá-lo como líder na Alemanha do obscuro Rito Maçônico de Swedenborg(2). Contudo, embora houvesse sido admitido no citado Rito naquele mesmo ano (Gilbert, 1996:135), Papus não possuía autoridade para conferir quaisquer tipos de representações em seu nome. Deste modo, coube ao francês apenas se limitar a orientar Reuss no sentido deste procurar conversar com o Supremo Grande Secretário do Rito em questão, função essa então exercida pelo famoso maçom inglês Dr. William Wynn Westcott (1848-1925)(3). Por sua vez, na seqüência dos eventos, foi por intermédio de Westcott que Reuss chegaria ao personagem que detinha total autoridade para lhe dar a tão desejada representatividade relacionada ao Rito de Swedenborg: o polêmico Maçom John Yarker (1833-1913)(4).

O contato feito com Yarker logo se mostraria de grande proveito para Reuss (em breve o comentarei por aqui, em Orobas). Contudo, em relação a Encausse – tema principal do presente artigo –, somente um pouco mais tarde é que o líder mundial da O.T.O. veria na França uma promissora oportunidade para expandir as fronteiras de suas Ordens.

Na ocasião, Papus, também médico e escritor, já contava com a fama de ser um ocultista reconhecidamente consagrado e era membro de diversas organizações de caráter místico e iniciático. Apenas citando algumas, ele havia sido membro da Sociedade Teosófica (McIntosh, 1975:175) e um dos principais participantes do Conselho dos Doze, órgão responsável pela direção da preclara Ordem da Rosa Cruz Cabalística (Webb, 1989:216)(5), a qual o Dr. Encausse viria a liderar após a morte de seus fundadores. Ao mesmo tempo, credita-se a Papus a fundação (ou reativação, como alguns preferirão frisar) da Ordem dos Superiores Incógnitos, também chamada Ordem dos Martinistas. Ele também foi membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada, fazendo parte do Templo de Ahathoor de Paris.(6) Além de tudo isso, em 1893 Papus também fora consagrado Bispo Gnóstico por Tau Valentin II (i.e. Jules Doniel, 1842-1903), Primaz da Igreja Gnóstica da França (Scriven, 2001b:217).

Apesar de não ser um maçom regular, em 1908, Papus organizou em Paris uma espécie de conferência internacional de Maçonaria. O evento, também chamado de "Congresso de Espiritualidade", aconteceu no templo parisiense da Loja Maçônica Droit Humain. Reuss, que nesse período ansiava por constituir na França um braço de seu Rito de Memphis e Misraim, em 24 de junho daquele ano, aproveitou a ocasião proporcionada pelo Congresso e conferiu justamente a Papus uma Patente(7) que o autorizava a fundar algo não muito bem definido, denominado “Supremo Grande Conselho Geral dos Ritos Unificados da Maçonaria Antiga e Primitiva para o grande Oriente de França e suas Dependências em Paris” (Scriven, 2001b:217). No mesmo evento, outro nome oportunamente agraciado pelas patentes distribuídas por Reuss foi o notório Martinista francês Téder (Charles Détré, 1855-1918), que posteriormente viria a suceder Papus na liderança da Ordem Martinista (McIntosh, 1975:220). Conforme as referências consultadas, Papus fora patenteado como 33º, 90º, 96º, enquanto que Téder recebia o 33º, 97º e Xº (Koenig, 1994a:21)(8). A partir das graduações mencionadas nessas referências, pode-se afirmar que embora Papus possuísse patente de Memphis e Misraim, o legítimo representante da O.T.O. de Reuss (o Xº) para a França na verdade seria Téder.

Porém, existe quem especule – sem muita convicção – sobre a possibilidade de que Papus também houvesse recebido, na mesma oportunidade, o Xº O.T.O. (Scriven, 2001a:8 e 2001b:218)(9), sendo ele, portanto, o real representante da Ordem na França. De todo modo, embora a sombra da dúvida ainda paire sobre a questão, note-se que a revelia de qualquer representatividade recebida por ambos, a sina dos famosos representantes de Reuss mais uma vez se repetiria: nem Téder nem Papus trabalharam no sentido de promover os imaginários braços franceses das Ordens de Merlin Peregrinus.

No que concerne a Papus, uma ressalva ainda deve ser feita. Como será visto agora, acredita-se que tudo que ele fez em relação a O.T.O. teria sido nomear outro representante para esta Ordem.

Assim, dentro do escopo pertinente a certa ramificação que teria origem na suposta O.T.O. francesa, outro nome a ser aqui citado é o do franco-haitiano Lucien-François Jean-Maine (1879-1960). Mesmo não sendo alguém hoje considerado famoso pela maioria dos não muito bem informados círculos ocultistas contemporâneos, Jean-Maine foi um conceituado representante das linhagens apostólicas das Igrejas Gnósticas operantes na Franca de sua época. Não há muita documentação que sustente uma história clara sobre sua participação como membro efetivo da Ordem Templária de Theodor Reuss. Porém, inicialmente, existem fontes que indicam Ordenações gnósticas conferidas a Jean-Maine tanto por Papus quanto por Jean Bricaud (1881-1934) (Koenig, 1994a:235)(10), o que pelo menos evidencia a grande possibilidade de haver alguma proximidade entre Jean-Maine e estes dois últimos. Assim sendo, segundo consta, acredita-se que em 1910 Papus – com ou sem permissão de Merlin Peregrinus – teria conferido autoridade de Xº da Ordem de Reuss justamente para Jean-Maine, fazendo-o representante da O.T.O. para o Haiti e às Ilhas Francesas (Koenig, 1994a:246).

De todo modo, com ou sem a patente de Xº da Ordem de Reuss, o franco-haitiano Jean-Maine foi mais um que jamais trabalhou como um membro ativo da O.T.O., no sentido de estabelecê-la devidamente seja no Haiti seja nas Ilhas Francesas, ou em qualquer outro lugar. No entanto, aqui é relevante citá-lo, pois, alguns anos mais tarde, será justamente ele o fundador daquela que é reconhecida como a primeira dissidência da O.T.O., ramificação esta conhecida como O.T.O.A., ou Ordo Templi Orientis Antiqua.

Em suma, a revelia da insistência de Theodor Reuss, até aproximadamente 1911, de todos os famosos nomes por vezes citados como Xº da O.T.O., não houve sequer um a se empenhar como seu represente de fato, divulgando adequadamente sua Ordem ou trabalhando no sentido de expandí-la. Todos eles, Steiner, Krumm-Heller, Papus, Téder e Jean-Maine, apenas deram continuidade aos movimentos nos quais já estavam engajados, relegando ao completo fracasso o plano de Reuss de tornar a O.T.O. uma organização com forte presença seja na Europa seja na América Latina.

Por último, naquilo relacionado ao Dr. Gerard Encausse, uma nota curiosa ainda poderá ser acrescentada. Acontece que a revelia de sua não participação como membro efetivo da O.T.O., hoje, Papus é considerado pelos membros do corpo Eclesiástico desta Ordem, a Ecclesiae Gnosticae Catholicae, como um Santo a ser sempre mencionado e adorado em suas Missas Gnósticas (em Liber XV).


NOTAS:

(1) Embora seja considerado francês, Papus nasceu na Cidade de Corunha, na Espanha.

(2) A respeito das atividades do Rito de Swedenborg, consulte o excelente texto de nosso Ir. R. A. Gilbert, “Chaos out of Order: the Rise and Fall of the Swedenborgian Rite”, mencionado na bibliografia.

(3) Entre outras, Westcott também foi um dos fundadores da The Hermetic Order of the Golden Dawn, bem como Magus Supremus da S.R.I.A. (Societas Rosicruciana in Anglia).

(4) Após muito hesitar, em 21 de fevereiro de 1902 Yarker emite uma patente para Reuss, autorizando-o a fundar em Berlim a Loja Swedenborg do Santo Graal, nº 15 (Gilbert, 1996:135). Ressalte-se que dada à completa irregularidade do Rito de Swedenborg, obviamente esta patente não proporcionou a Reuss a tão almejada regularidade maçônica que ele tanto buscava.

(5) Ordem fundada em 1888 por Joséphin Péladan (1859-1918) e Stanislas De Guaita (1861-1897).

(6) Porém, conforme Howe (1972:295), Papus era apenas membro Honorário da Golden Dawn (Aurora Dourada).

(7) Na “História da O.T.O.”, escrita por
David Scriven (i.e. Frater Sabazius, i.e. Bispo Tau Apyrion) e amplamente divulgada pelos sites da O.T.O. americana, há uma curiosa e muito reveladora observação a respeito dessa patente. Ali, o autor diz enfaticamente que “nesta conferência, Encausse recebeu, sem pagamento, uma patente de Reuss”. Certamente, em se tratando Theodor Reuss, o "sem pagamento" é algo tão inusitado que merece o justo destaque.

(8) Outra fonte indica Téder apenas como IXº O.T.O. (Scriven, 2001b:223).

(9) É importante salientar que David Scriven hoje é conhecido como Frater Sabazius Xº da O.T.O. americana, Ordem estigmatizada pela alcunha “Califado”. Assim, ao procurar estabelecer Papus como membro efetivo da O.T.O., Scriven, na verdade, apenas corroborava a idéia da construção de um passado mítico. De todo modo, recentemente, com o que a historiografia tem demonstrado, Scriven refez o seu texto e pelo menos passou a admitir que a participação de Papus na O.T.O. é “incerta”.

(10) Jean Bricaud, ou Bispo Tau Jean III, um dos fundadores e primeiro Patriarca da Igreja Católica Gnóstica (Scriven, 2001a:8).


BIBLIOGRAFIA:

CROWLEY, Aleister. Liber XV - O.T.O. Ecclesiae Gnosticae Catholicae Canon Missae.
Versão em inglês em: http://www.hermetic.com/sabazius/gnostic_mass.htm; versão em português: http://www.otobr.com/textos_pag.asp?txt=1907915900

GILBERT, Robert. A. 1996: “Chaos out of Order: the Rise and Fall of the Swedenborgian Rite”. In: GILBERT, Robert A. (ed) Ars Quatuor Coronatorum – Transactions of Quatuor Coronati Lodge, Vol. 108 for the Year 1995. Frome and London: Butler & Tanner, pp 122-149.
Versão on-line: http://freemasonry.bcy.ca/aqc/swedenborg.html


HOWE, Ellic. 1972: The Magicians of the Golden Dawn. London: Routledge & Kegan Paul.

KOENIG, Peter-Robert. 1994: Das OTO-Phänomen. München: AWR.

McINTOSH, Christopher. 1975: Eliphas Levi and the French Occult Revival. London: Rider & Company.

SCRIVEN, David (i.e. Tau Apiryon ou Frater Sabazius). 2001a: “History of the Gnostic Catholic Church”. In: CORNELIUS, J. Edward (Ed) e CORNELIUS, Marlene (Ed). Red Flame - A Thelemic Research Journal, nº 2. Berkely: Red Flame Productions, pp 3-15.
_____. 2001b: “Portraits of the Saints of the Gnostic Catholic Church”. In: CORNELIUS, J. Edward (Ed) e CORNELIUS, Marlene (Ed). Red Flame - A Thelemic Research Journal, nº 2. Berkely: Red Flame Productions, pp 117-224.
_____. “History of the O.T.O.”. Versão on-line em inglês: http://www.hermetic.com/sabazius/gnostic_mass.htm. Versão em português: http://www.otobr.com/pagina.asp?pg=-1531658296

WEBB, James. 1989a: “Rosicrucians”. In: CAVENDISH, Richard (ed.) e RHINE, J.B (cons.). Encyclopedia of the Unexplained. London: Arcana, pp 215-218.

Créditos da imagem
Papus:
Ocultura, em http://www.ocultura.org.br/index.php/Papus

6 comentários:

Romão disse...

93!

Seria muito interessante, seguindo esta linha de pensamento, comentar um pouco mais sobre Jean e Bertiaux, bem como seu movimento de Voodo Gnóstico dentro do sistema da OTO-A, Colégio da Serpente Negra, Monastério dos 7 raios.
Sobre os supra citados, é realmente difícil concebê-los engajados em promover a OTO, como muito querem alguns hoje em dia...
Estudo muito bom este seu, parabéns pela iniciativa, aguardo os próximos capítulos! rs

93.93/93!

Romão .'.

Unknown disse...

aqui no brasil tem alguma organização da oto principalmente aqui em belo horizonte gostaria muito de conhecer mais profundamente

Carlos Raposo: disse...

Prezados;

Agradeço a visita!

Quanto à sugestão do Ir. Romão, ela é muto interessante. Contudo, o foco dos estudos aqui publicados são a O.T.O. e seus personagens. Nesse sentido, apenas citei a O.T.O.A. por conta dela aparecer como a primeira dissidência da Ordo Templi Orientis.

Mesmo assim, vou considerar a sua sugestão e, na medida do possível, relacionarei algo a respeito dos grupos e dos nomes citado. Obrigado!!!

Quanto ao pedido do visitante que assina como "o mundo virou geral", já houve em Belo Horizonte pessoas responsáveis por um grupo independente da O.T.O. Tifoniana. Atualmente, não tenho informações sobre a continuidade desse trabalho. Uma dica sobre grupos da O.T.O. em sua Cidade poderá ser obtida no site do Califado brasileiro (www.otobr.com - é um site instável, que boa parte do tempo se encontra fora do ar). Embora este site não seja muito rico em informações e praticamente não existam atualizações sendo feitas, vc poderá escrever para os e-mails de contato nele relacionados. Talvez vc consiga alguma resposta.

Grande abraço a todos.

Carlos Raposo

ALANA MORGANA disse...

Oi!Adorei seu Blog!

Anônimo disse...
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NeoYoda disse...

Parabéns pelo trabalho e pesquisas, ajudou muito, estou procurando mais sobre as origens da Menphis com Clagliostro e também sobre a Bocintoro se tiver algo.